buracos de minhoca (Samuel Beckett / Drummond / Sophia de Mello Breyner Andresen)

Na física contemporânea, chamam-se buracos de minhoca possíveis dobras no tecido do espaço-tempo que conectam dois pontos extremamente distantes. Poderíamos assim sonhar em atravessar distâncias colossais caso operássemos uma torção no tecido, aproximando duas extremidades. É uma teoria sem comprovação, mas inspirada na materialização de tubos que atravessam rochas, troncos, conchas e terra, caminhos abertos pelos mais diversos tipos de “minhocas”.

O curioso é que essas fendas tubulares observadas no interior dessas matérias duras quase que comprovam perfeitamente a hipótese científica: não só demonstram como dois pontos de uma rocha se conectam por meio de um caminho imprevisível, mas também trazem concentrados, dentre do breve percurso traçado por uma minhoca, milhões de anos de adaptação. Moluscos só perfuram tecidos duros por terem desenvolvido um tipo de ácido corrisivo a rochas de granito que, inclusive, perfura cabos de telecomunicação subaquáticos. Aliado a esse tipo de procedimento adaptativo, ademais, algumas espécies de minhocas também desenvolveram a capacidade de viver mais, podendo ter um ciclo de vida de até 500 anos. 

Essa concentração temporal foi maturada numa situação completamente adversa do ponto de vista da locomoção: minhocas moles soterradas de baixo da terra, dentro de uma pedra depois de, supondo, uma catástrofe (como a do asteroide Chicxulub, por exemplo, que matou os dinossauros). A única saída é não sair, mas ficar ali e ver no que dá. 

Ninguém melhor que Drummond conseguiria exprimir essa cena a partir da condensação imagética que seus versos propulsionam em “Áporo” (in. A rosa do povo).

Samuel Beckett o faz pela dramaturgia, produzindo temporalmente essa experiência da imobilidade aporética a cada vez que suas palavras são enunciadas. Em “Esperando Godot”, a pedra na qual encontram-se as minhocas (palavras e ações humanas) soterradas é a forma dramática que o autor insiste. Mas insistindo ainda nessa estrutura, a radicalização do impasse da ação humana diante de uma catástrofe é acentuada como exemplo paradigmático de uma “natureza perturbada e perturbadora da forma, em franca ruptura com a tradição […] quando, para matar o tempo, Vladimir e Estragon decidem praticar ‘conversação’ ou se dispõem a representar, peça dentro da peça, assumindo os papéis de Lucky e Pozzo; quando, observando a plateia, equiparam a paisagem a um ‘espetáculo admirável’, ou Pozzo implora por suas deixas, adotando uma dicção empostada, de palco em segundo grau.”(1)

Os buracos de minhoca aparecem no livro anterior a Esperando Godot, no romance O inominável cujo proto-personagem chama-se Worm, em uma de suas variações, e se vê imerso num fluxo cada vez mais fundo e escuro. 

Após escrever essas duas obras, Beckett é autorizado a paulatinamente ir rompendo com as formas do romance e do drama, e encontra no fracasso dessas formas uma escrita intersticial, condensada na autonomia da voz que restou depois do fim. 

Estamos até hoje lidando com esse fio mínimo da voz humana, já um ruído da ruína — e é quase tudo o que temos e por isso mesmo vai sendo amplificado, repetido, ganhando consistência, suor, voz, pois “nunca as minhas mãos ficam vazias”, como lembram os atores da peça homônima de Cristian Duarte, repercutindo em looping esse verso da Sophia de Mello Breyner Andresen.

Apesar das ruínas e da morte

Onde sempre acabou cada ilusão

A força dos meus sonhos é tão forte

Que de tudo renasce a exaltação

E nunca as minhas mãos ficam vazias

— Sophia de Mello Breyner Andresen

Áporo

Um inseto cava

cava sem alarme

perfurando a terra

sem achar escape.

Que fazer, exausto,

em país bloqueado,

enlace de noite

raiz e minério?

Eis que o labirinto

(oh razão, mistério)

presto se desata:

em verde, sozinha,

antieuclidiana,

uma orquídea forma-se.

— Carlos Drummond de Andrade

(1) Andrade, 2015, prefácio ao livro Esperando Godot.

Sobre Beckett e minhocas: “Aporia as Metamorphosis in The Unnamable” (Amanda Dennis).

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