sobre moby dick

O capítulo 32 dessa obra sintetiza forças narrativas que compõem de modo quase total a explicação da poética de Melville. Abre-se com a anunciação da aventura enquanto elemento sempre latente, nos lembrando de algo como não se esqueça do que está por vir, da grande aventura, lembre-se sempre que estamos à iminência de acontecimento devastador, para o meio do caos sem referencial de realidade cotidiana alguma. Mas a escrita da voz narrativa, também, não para. É tão forte e tão verdadeira sua não-paragem e eloquência de um ser qualquer, que se põe a escrever, que perde-se a individualidade própria do personagem Ishmael. Ele dissolve-se me vozes, em seus próprios manuscritos escriturais, no corpo dos outros e, principalmente, no ensaísmo.

Anuncia-se a partida, “já fomos lançados nas profundezas” – mas a forma de se relacionar com o mundo pede então, surpreendentemente, a escrita de ensaio. O conhecimento de mundo (ciência), vinculado a um corpo gaguejante, escritural, uma história de um indivíduo qualquer, sem grandes dotes ou qualidades (e que portanto perde-se, apaga-se no meio da escritura). Acredito ser nesse ponto em específico no qual Sebald encontra a verticalidade de seus romances.

E a pergunta que resta pairando é: por que importa relatar as coisas de uma forma ensaística, digressiva, com rupturas e preenchimentos de conhecimentos diversos?

Obviamente, há a importância, para a trama, de se criar uma valorização, por meio do insondável e misterioso, do objeto sobre o qual gira em torno a livro; ou seja, preparar o terreno ao leitor para o que virá – para adentrar apropriadamente o terreno da aventura. Mas assinala também o gesto do querer escrever, do manuscrito inaugural, que irrompe como o magma modelador da linguagem. O desejo de trazer o conhecimento e fazê-lo circular de uma forma livremente específica, elaborada pela mão do narrador – uma mão bastante dançante, cheia de vícios, ruídos e restos corpóreos que ficam marcados na escrita.

Seja como for, agora reconheço a aventura que tanto delicia e dá prazer, que é própria da literatura. O cinema não daria conta de trazer aventuras dos acontecimentos com as aventuras da língua, da escrita. E esse prazer estético, feito de cortes, despersonalizações, citações, ensaísmos… irá encontrar sua variação contemporânea em livros como César Aira, Sebald, em peças como Janaína Leite, Tiago Rodrigues.