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[SOBRE O LIVRO INÉDITO GRADIENTE SPECTRUM, DE TIAGO CFER. RASCUNHO PARA FUTURA ORELHA DO LIVRO.]
Dividido em blocos narrativos que correspondem a tempos e lapsos diversos de uma vida, flagrada sempre num constante agora, o livro perpassa pela violência de uma infância dos anos 80, marcada por drogas, sons de rádio e abandono; por uma internação distópica em hospital sustentado por corporações privadas; pela decadência do ensino público, também moldado segundo ideologias neoliberais; por contaminações viróticas; pelo desemprego e pela vida na rua no coração de uma megalópole… É desse modo que o romance de Tiago Cfer paulatinamente presentifica uma fervilhante e caótica experiência do horror ainda sem nome: tudo acontece simultaneamente, em diversas camadas, no mesmo palco.
O perturbador é que nada deste horror faz-se por meio de uma estratégia discursiva que se coloca em um futuro especulativo; não. É uma ficção que antes registra o ruído real do mundo, oferecendo-nos um mostruário, construção e atestamento do presente momento.
Exposição e ensaio sobre o horror; por sua vez, também uma história da violência, nada evidente ou óbvia, ao personagem possível de tal romance que se articula no interior da arena deste século.
Mas para além disso: há também a história de uma interrupção de tudo.
“Extensas filas de automóveis imobilizados, seus faróis enfeixando no centro de nossos negócios como se aqui fosse a cabeça de um polvo elétrico. Ninguém se move.”
A ordem do mundo, sua infosfera e megalópoles em ruínas, é contada como uma falha descontrolada, um disco riscado — o Gradiente Spectrum, aparelho de rádio, arrebentado pelos pais do narrador.
As vozes do livro, duplamente falhadas, vazam desse mundo em eterna crise e mostram-se teatro. Mostram-se encenações e inusitadas formas de encontro — melhor ainda, teatrinho, aquele ininterrupto, de rua, sempre hesitando em quando começar e quando terminar.
Acontecem então movimentos nesse escuro insólito, sempre “no limite territorial”.
O livro conta a história dessa freagem; deslocamento; fuga disfuncional; suspensão do ritmo que se dá na curva de uma narrativa, na curva de uma rua. Podemos vislumbrar o tecido que se rasga para fora do caos — final do romance, feito de paisagens e atmosferas que dão indícios de ideias, movimentos e ficções possíveis por vir.
Romance sobre a forma e o prazer que há em adentrar encenações que surgem no escuro, dentro de um “Espaço esvaziado e ao mesmo tempo super-multitudinoso.”